por José Policarpo Junior
O Instituto de Formação Humana oferece pela primeira vez, neste ano de 2017, o curso de aperfeiçoamento em formação humana, cujo pré-requisito é a graduação em qualquer curso de nível superior. As inscrições se encontram abertas e as informações a respeito do curso podem ser consultadas neste link (curso cancelado).
O propósito deste post, no entanto, é apresentar, com brevidade, uma introdução à ideia de formação humana e a razão de ser desse curso – de fato, não se pode aqui ir além disso, posto que as 180 horas do curso se destinam precipuamente a esse fim.
Há vários modos de pensar a formação humana, não havendo
possivelmente teoria que concorde total e plenamente com outra a esse respeito,
justamente por uma questão fundamental: trata-se de um saber e uma meta em
relação aos quais ninguém detém plenitude de realização. Aliás, este é um dos
argumentos que pode ser utilizado contra a admissibilidade do referido
conceito: se ninguém detém saber pleno sobre tal assunto, o que cada um falar a
respeito expressará apenas sua opinião sem qualquer pretensão de fundamento ou
legitimidade específica. Todavia, se fôssemos adotar tal critério como
definidor das reflexões que podem ou não ser feitas, teríamos que certamente desistir
de todo e qualquer saber – excetuando-se talvez parte dos saberes matemáticos
que expressam uma certeza apodítica – na medida em que não há, em campo algum,
conhecimentos plenos e seguros. A própria ciência está assentada no princípio
admitido a priori da provisoriedade
de todo e qualquer conhecimento – não há absolutos na ciência, embora alguns
cientistas vez por outra se esqueçam desse ponto fundamental. Portanto, não
consideramos justo que se deslegitime a reflexão sobre a formação humana tão
somente porque não tenhamos conhecimento pleno e conclusivo sobre a mesma.
Do reconhecimento da inexistência de saber exaustivo não se
segue todavia a negação de todo e qualquer conhecimento sobre a formação humana.
Nossos conhecimentos são provisórios, como afirma a ciência, mas é preciso
ressaltar– especialmente quanto à natureza de fenômenos que escapam à
manipulação do homem – que eles também são aproximados. A título de exemplo,
ninguém nunca tocou ou provou empiricamente a existência do
inconsciente humano, mas ninguém suficientemente esclarecido poderia negar nos
dias de hoje a existência desse fenômeno a que a psicanálise denominou de inconsciente, por mais que a própria
teoria psicanalítica não possa ser exaustiva a respeito do mesmo. Dessa forma, afirmar
a existência e modo de atuação do inconsciente, por mais impreciso que tal
conhecimento venha a ser, é algo muito mais apropriado do que negar ou
desconhecer sua existência. Aplicamos esse mesmo entendimento à formação
humana.
Ao contrário do que imagina boa parte do senso comum,
formar-se humanamente não é resultado de um processo automático ou aleatório.
Tal formação depende da intencionalidade, compreensão e determinação com que
aquela é buscada. A socialização primária, o processo de escolarização e as
diversas outras práticas de socialização secundária não são suficientes e
garantidoras da formação humana. Logo, tal formação não é destino do ser
humano, nem pessoal nem socialmente.
A formação humana depende pois de compreensão minimamente
razoável do Ser do ser humano. Nos limites deste post não temos condição de
apresentar em detalhe uma tal compreensão; entretanto, tentaremos apresentar
uma síntese.
O ser humano não é um dado da natureza, mas um tipo de ser
entre outros seres que expressam o Ser. A ausência de tal compreensão, entre
outros aspectos, permite que se reduza o ser humano ao nível de matéria,
elemento de manipulação ou simples objeto. Certamente o ser humano possui também dimensão de objeto e de matéria,
sem a isto se reduzir em absoluto.
O ser humano é uma expressão do Ser em suas dimensões
corpórea, senciente (interior e exteriormente), pensante, relacional,
sócio-histórica e genérica.
O ser humano é, portanto, simultaneamente: (a) um ser da
natureza, pois seu gênero dela brotou e não pode existir senão em relação
determinada com a mesma; (b) um ser material que depende de processos físicos e
químicos que se regem por leis parcialmente conhecidas pelo ser humano; (c) um
ser biológico, submetido a uma organização determinada da matéria que possibilita
a emergência de um processo vital sustentado por relações múltiplas entre
órgãos; (d) um ser particular que se estrutura por meio de sínteses
progressivamente singulares entre suas dimensões corpórea, senciente e
pensante; (e) um ser pessoal que, por seu espírito ou autoconsciência interior,
dirige a integração possível entre as diversas dimensões de seu ser, bem como projeta
e elege sua vida diante das condições que se lhe defrontam e que não pode
manipular a seu bel-prazer; (f) um ser social e histórico que não pode viver,
sob pena de sofrer grandes prejuízos advindos da alienação e isolamento, senão
entre outros seres humanos em uma configuração social em determinado espaço e
tempo.
Por sua própria constituição, o ser humano necessita,
portanto, desenvolver-se em relação com a natureza, em sua estrutura
físico-somática, em sua integração corpo-emoção-pensamento, em clareza e
discernimento espiritual quanto ao seu ser, sua própria vida e sua participação
no mundo com os demais seres humanos. A maior parte de todo esse
desenvolvimento depende de orientação que se inicia exteriormente e deve se
tornar progressivamente interior e autoconsciente. A educação pode participar
da formação humana e, no sentido estrito aqui apontado, deve tê-la por escopo,
mas a última não se limita à primeira. A formação humana é mais ampla que a
educação.
Formar-se humanamente é, portanto, um processo integral da
pessoa consigo mesma, mas tendo sempre por meta a transcendência de si em
direção ao outro, à sociedade, ao mundo, ou a uma causa; não é, nem pode ser,
um processo de autocentramento. Dependemos de início do contexto vivencial
imediato e da orientação de pessoas afetivamente referentes, até que possamos
nos tornar pessoalmente comprometidos com o cultivo e direção formativos.
Embora não tenhamos saber pleno sobre esse processo, uma vez
que vastas áreas da natureza do ser humano jazem sob o mistério, há diversas
fontes disponíveis de conhecimento e formação nas grandes tradições
espirituais, em práticas terapêuticas ancestrais, nas tradições teóricas da
filosofia, da educação, da psicologia e da medicina, bem como na investigação
científica. A compreensão articulada de tais fontes é tarefa da formação humana
como ciência e prática.
Reconhecemos que o saber a que se faz referência aqui não é
disseminado nem popular. Essa compreensão enfrenta obstáculos epistemológicos e
institucionais, mas também de natureza pessoal e ideológica. Embora não
tenhamos condição de tratar de todos esses aspectos aqui, gostaríamos de
mencionar, apenas superficialmente, dois obstáculos de monta para que a
formação humana possa se tornar acessível e efetiva.
O primeiro deles refere-se ao fundamentalismo
científico-cultural do materialismo
predominante nos paradigmas epistemológicos e científicos. Tal fundamentalismo
se exerce indiretamente pelo fortalecimento de princípios que consideram os
fenômenos como de natureza exclusivamente material. Não importa, do ponto de
vista de sua influência, que aqueles princípios jamais tenham sido provados por
critérios de prova admitidos pela própria ciência. Esta, portanto, se configura
em seus axiomas por balizas que não são legitimadas por seus próprios
princípios constitutivos. Trata-se, portanto, de dogmas. Uma vez que a formação
humana reconhece e compreende o ser humano como uma expressão específica do
Ser, com algumas dimensões próprias irredutíveis ao substrato material, não
pode gozar, portanto, da aprovação do paradigma epistemológico dominante nas
ciências estabelecidas. Desse modo, a existência da formação humana no âmbito
acadêmico é, por si mesma, uma presença contra-hegemônica.
O segundo obstáculo, de amplitude não menor que o anterior, refere-se
à natureza pessoal e apropriada do saber formativo. A formação humana não se
realiza apenas mediante conhecimento teórico-intelectual. Trata-se de um tipo
de saber que se realiza mediante tendência à congruência entre diferentes
dimensões constituintes do ser humano anteriormente mencionadas. Tal saber é
portanto de natureza incorporada e vivencial. Ora, um saber de tal natureza não
pode ser alcançado, ainda que parcialmente, sem cultivo de autoconsciência,
comprometimento e autodisciplina, até que, em grau minimamente satisfatório, sua
expressão unificada se apresente como caráter do humano. Claro está, portanto,
que essa compreensão formativa não se alcança de forma automática ou como
simples derivação do processo de socialização. Necessário se faz um processo de
cultivo intencional que possa vir a se tornar, por sua prática, espontâneo e
livremente acolhido. Em outras palavras, trata-se de saber inseparável de
vivência pessoal responsável e atenciosa. Todo ser humano particular tem, por
conseguinte, a prerrogativa de recusar comprometer-se com esse tipo de saber, a
despeito de vir a ser o principal prejudicado por essa escolha, quer o saiba
plenamente, quer não. Fica claro porque a formação humana, como um campo
próprio de saber e prática, dificilmente poderá tornar-se popular.
O curso de Aperfeiçoamento em Formação Humana tem o objetivo
de tratar dessa temática de modo teórico e vivencial em nove módulos que
focalização aspectos diferenciados da mesma, mas todos relacionados entre si.
Para informar-se mais detalhadamente e se inscrever no
referido curso, clique aqui (curso cancelado).
Sabemos que este post não é suficiente para esclarecer e
fundamentar o conceito de formação humana, mas acreditamos que seja suficiente
para ressaltar sua importância teórica e vivencial. Neste Blog, há vários posts que tratam diretamente da relação entre formação humana e espiritualidade, que podem ser consultados, caso seja do interesse do leitor. Exemplos: um, dois, três, quatro, cinco.