Por José Policarpo
Junior
Ao olhar de muitos, a relação aludida no título deste
artigo pode se expressar despropositada. Segundo o entendimento de alguns, o presumível
aspecto sublime da espiritualidade não deveria se manchar com a sujeira da
política configurada em práticas conhecidas e pouco nobres de diversos partidos
e políticos profissionais. Para outros, a espiritualidade talvez seria a
condição ou expressão da paz, enquanto a política estaria no polo oposto do
conflito. Apesar dessa visão ser comum entre diversas pessoas, a mesma expressa
apenas um cliché que, por mais popular que possa ser, não tem o poder de substituir
ou aniquilar nenhum dos dois conceitos legados até nós por rica tradição
cultural.
A polissemia da palavra espiritualidade é evidente, sem que por isso se deva refutar a
possibilidade de encontrar, em sua rica tradição, um fio significativo capaz de
nos conduzir a uma acepção mais substancial do conceito. Em sua etimologia, o
termo deriva do latim spiritus, que
significa respiração, fôlego e está relacionado ao verbo spirare (respirar). O termo spiritus
é o equivalente latino do grego pneuma
e do hebraico ruah, ambos fazendo
referência ao elemento ar, ao ato da respiração. Desde a etimologia já é
possível descortinar o sentido profundo do termo espiritualidade que se manifestou em diversos momentos da história
ocidental e que veio a convergir com o entendimento oriundo de grandes
tradições milenares orientais; o referido termo aponta para a compreensão de
que há algo da ordem do invisível que anima o elemento visível do ser humano.
Segundo essa acepção originária, o ser humano não se reduz a sua visibilidade
corpórea, mas há um “algo” interior e invisível, que, a despeito de não se
poder precisar sua natureza, movimenta e conduz aquilo que é visível.
Na tradição cristã, a própria presença divina no mundo
após o advento da existência corpórea do Cristo entre os homens é nomeada como
o Espírito Santo. Por essa razão, tal tradição concebeu em algum momento a
espiritualidade como a vida de alguém que se encontra dirigido pelo Espírito de
Deus. A fim de encontrar-se com esse Espírito
e identificá-lo em seu próprio interior, o ser humano é instado, na tradição
cristã e em outras tradições milenares, a dedicar momentos de retirada
temporária das atividades mundanas, nas quais predomina o princípio da
visibilidade nas ações entre os homens, para poder mais facilmente realizar e
cultivar aquele encontro interior, ou espiritual.
Devido possivelmente a tais momentos de retiro,
de silêncio e introspecção orientada, o sentido de espiritualidade passou a ser
identificado popularmente por sua roupagem religiosa, mística e,
posteriormente, esotérica.
A despeito do momento necessário de “retirada do mundo” –
pensemos, a título de exemplo, nos relatos do período de intenso treinamento
que Sidarta Gautama passou nas florestas antes de atingir a condição de Buda;
ou no caso dos quarenta dias em que Jesus passou no deserto e veio a ser
tentado pelo diabo, vencendo-o ao final, segundo relato dos Evangelhos – todas
as grandes tradições espirituais revelam a importância de que a atuação
espiritual ocorra no mundo, ou seja, entre os seres humanos. Um antigo
provérbio Zen afirma que o pequeno sábio se encontra na montanha, enquanto o
grande sábio está no mercado. Os momentos de retirada, introspecção,
contemplação e abertura para a natureza última são fundamentais e
insubstituíveis, mas não existem como fins em si mesmos. É nesses momentos que
o praticante espiritual visualiza com maior clareza o sentido de sua presença e
ação no mundo entre os seres humanos, bem como se fortalece interiormente para
desempenhá-las com integridade. Outro exemplo desse entendimento é o relato dos
Evangelhos da transfiguração de Jesus diante de Pedro, Tiago e João. Jesus sobe
ao monte, conversa com os espíritos de Moisés e Elias, é confortado e
confirmado por eles, em um momento em que se prepara para enfrentar as
acusações morais dos fariseus e sacerdotes e sua condenação religiosa e
política. Pedro, sem entender a razão daquele momento, sugere permanecer ali no
êxtase daquela experiência, o que revela sua incompreensão da mesma.
A “retirada” espiritual do mundo assume, portanto, o
sentido de uma maior preparação, compreensão e fortalecimento pessoal para
“voltar” ao mundo e agir com lucidez e inteireza. O momento vivenciado na
invisibilidade interior revela-se como essencial aos atos vivenciados na visibilidade
exterior, até que, progressivamente, a dualidade interior-exterior,
invisível-visível, espírito-mundo possa ser superada.
Dito isto, pode-se inferir que a ideia de espiritualidade,
segundo aquilo que há de melhor e mais fundamentado na tradição da mesma, não
surge como algo apartado do mundo, mas busca, antes, por meio da ação daquele
que aprofunda sua vida espiritual, unificar em um continuum aquilo que é do âmbito do visível e do invisível, do
mundo e do além-mundo, do profano e do sagrado, de modo que pela experiência de
tal pessoa essas próprias divisões sejam progressivamente superadas e
integradas.
A ideia da política tal como formulada de forma original
pelos gregos na antiguidade clássica pressupunha exatamente a organização do
mundo comum para a vida livre do cidadão, influenciada igualmente por
princípios difusos que se originavam do ideal da Paideia que inspirava os
ideais da formação e da vida política entre os gregos. A história da filosofia
nos legou a consciência de momentos de tensão entre a exigência do filosofar e
a vida no mundo político, mas uma oposição insuperável entre a sabedoria
filosófica e a vida política seria algo completamente absurdo e inconcebível
para qualquer dos filósofos gregos.
Não houve em nenhum outro povo, além do grego clássico, a
vivência da experiência política na antiguidade, de modo que a experiência mais
avançada de combinar organização social, liberdade do pensar, do agir e
deliberação cidadã das regras e princípios que o próprio corpo de cidadãos a si
atribuía é realização exclusiva dos gregos. No entanto, todos os povos em que
floresceu uma compreensão rica da espiritualidade alcançaram a condição de estruturas
sociais complexas, de modo que os princípios da primeira tinham necessariamente
que levar em consideração a vida da sociedade existente. Nesse sentido, toda
grande construção espiritual jamais se furtou a dialogar e a ter presença
efetiva no solo social e cultural de onde surgiu e para onde se espalhou. Mesmo
a tradição budista, com seus diversos meditantes isolados, jamais estabeleceu
este modo de prática espiritual como algo exclusivo, tendo, contrariamente,
estabelecido diversos outros modos de participação efetiva entre os não-monges
e o público em geral. O sentido de tal modo de atuação se faz claro nas
palavras atribuídas a Jesus de que os seguidores de sua mensagem seriam “sal da
terra” e “luz do mundo”, não devendo, portanto, deles se ausentar ou fugir.
Não há, portanto, base alguma nas próprias tradições
espirituais para se esposar a ideia de que a espiritualidade seja restrita
apenas à própria interioridade ou à vida pessoal de um modo exclusivo, motivada
apenas pelos princípios e prioridades individuais. Por mais, em tese, “sublime”
que tal visão possa ser, a mesma revela, contrariamente, seu inequívoco
autocentramento, confusão de sua vida interior com os limites da
espiritualidade e, por fim, seu egoísmo.
Certamente, não há espiritualidade autêntica na ausência
de trabalho e comprometimento interiores, mas desde que estes não tomem a si
mesmos por horizonte, antes realizem o trabalho interior no sentido de agir
efetivamente, no mundo, em prol daquilo que transcende a sua identidade e seu
mundo interior. A interioridade, portanto, é chamada a trabalhar no sentido de
envolver-se e familiarizar-se com o que inicialmente aparece como exterior a si
mesma, até que tal realidade se torne plenamente próxima e interior, de modo
que tal dicotomia tenda a ser progressivamente superada.
Compreender, portanto, que há um mundo – ou seja, uma
determinada disposição de práticas, ideais, hábitos, costumes, estrutura
imaginária-simbólica e institucional – que medeia a presença e interação entre
os seres humanos, é tarefa inafastável de qualquer espiritualidade autêntica, e
é nesse âmbito em que a ação espiritual que integra corpo, fala e mente deverá
ser exercida e orientada pelos princípios que são encontrados como decorrência
de se contemplar a unidade de todos os seres e entes: a justiça, a
solidariedade, a liberdade, a igualdade, a paz. Qualquer espiritualidade que
negue ou não afirme explicitamente tais princípios é falsa, independentemente de
sua origem. E aqueles não podem ser praticados senão na concreticidade da vida
cotidiana que acontece em um mundo – não são, portanto, abstrações mentais, mas
requerem um modo vivencial de conhecê-los que em muito transcende a simples
apreensão intelectual.
A situação política que configura a realidade “mundo” no
Brasil desde 2015, tem se mostrado um grande teste para os que dizem abraçar um
compromisso espiritual. Refiro-me apenas a estes, pois os que abertamente
refutam tal compromisso ou visão não podem ser cobrados por aquilo que negam,
embora até mesmo os princípios políticos em si fossem suficientes para exigir
determinados comportamentos condizentes com o habitar um mundo comum – mas não
é a tais pessoas que dirijo esta pequena reflexão. Refiro-me aqui, portanto,
àqueles que se dizem imbuídos e tocados por uma determinada visão da
espiritualidade que os leva a fazer orações, recitar mantras, meditar, adornar
espaços com motivos esotéricos ou presumivelmente sagrados e outras práticas
correlatas, mas que demonstram indiferença ou aversão ao espaço político,
recusa ao pensar, ódio a um determinado segmento ou partido político; incapacidade
ou recusa de assumir posições racionais e claras a respeito de fatos de
conhecimento público e incapacidade de estabelecer uma coerência pessoal entre os
princípios que afirma professar, os raciocínios e sentimentos que expressa
sobre fatos específicos e o comportamento que assume em relação a estes.
Embora sejam numerosas as situações e tendências que podem
ser citadas para exemplificar eventuais inconsistências “espirituais” diante de
fatos recentes da vida política brasileira, tenho que necessariamente me ater a
apenas algumas, e o farei tão só em relação a três delas:
1. O
mundo político, assim como qualquer “visão do mundo”, não é transparente;
trata-se sempre de algo muito complexo. Desse modo, é perfeitamente aceitável
que pessoas seriamente comprometidas com uma vida inspirada pela espiritualidade
sejam orientadas no mundo político por uma ideologia liberal, social-democrata,
socialista, ou comunista, pelo menos até o ponto em que tais ideologias não agridam
efetiva e concretamente princípios fundamentais alcançados pelo discernimento
espiritual, tais como a justiça, a igualdade, a liberdade, a solidariedade,
dentre outros. Uma dessas formas explícitas de agressão ocorre quando uma
adesão a um credo ou preferência política impele a pessoa a negar a realidade
de um ou mais fatos e a assumir posturas incoerentes para camuflar tal negação.
Aqueles, por exemplo, que negam que o impeachment
da presidente Dilma Rousseff foi parte de um Golpe de Estado, independentemente
de seu credo ou preferência política precisam demonstrar qual foi o crime de
responsabilidade cometido pela presidente e, ao fazê-lo, precisam aplicar o
mesmo critério e a mesma ênfase acusatória a todos os governantes do país, independentemente
de cor partidária, isto é, a todos os ex-presidentes e a todos os anteriores e
atuais governadores de estado que praticaram esse ato, isto é, as famosas “pedaladas
fiscais”, ou seja, manobras contábeis no orçamento. Se não o fazem, tais
pessoas incorrem claramente em posição de objetiva injustiça, inverdade e desigualdade,
na medida em que sua preferência ou credo político as impede de reconhecer ou
as leva a negar um fato objetivo da realidade, comportando-se como aquele que
tem apreço pela regra apenas quando esta o beneficia ou prejudica seu
adversário. Não há como aceitar que uma posição desse tipo esteja
espiritualmente fundamentada.
2. Sobre
os princípios da presunção de inocência e da acusação específica. A humanidade
trilhou uma longa jornada ao longo das inúmeras sociedades históricas até chegar
a elevar tais princípios ao patamar de Lei ou Constituição. Não vejo como se
possa ser contrário a tais princípios com base na espiritualidade; quem não os
aceita e tem a pretensão de pautar-se espiritualmente precisa se dar o trabalho
de demonstrar cabalmente sua inconsistência e estar pronto a aceitar
incondicionalmente sua inobservância quando esta se voltar contra si mesmo ou
contra pessoas próximas a si. A presunção da inocência está relacionada diretamente
ao princípio da liberdade e à dignidade de toda pessoa humana, independentemente
de credo, posição ideológica, etnia, orientação sexual, etc. Claro está,
portanto, que este princípio não pode se aplicar de forma seletiva, sob pena de
se negar a condição de humanidade a alguns e reconhecê-la somente a outros – o próprio
princípio seria objetivamente abolido dessa forma. O que ocorre, entretanto, na
atual realidade brasileira é que tal princípio tem sido sistematicamente negado
a algumas pessoas que estão ou estiveram direta ou indiretamente ligadas a uma
parte do espectro político, mais precisamente ao Partido dos Trabalhadores (PT),
a outras agremiações partidárias que fizeram parte do governo federal no período
de 2003 a 2015, e a empresários que mantiveram proximidade econômica,
governamental ou política a essas agremiações que estiveram à frente do governo
federal no referido período. Muitas dessas pessoas encontram-se presas a título
“preventivo” há meses ou anos, sem trânsito em julgado, com sua dignidade
pessoal afrontada sistematicamente pela mídia empresarial que apoia tais
medidas ilegais (porque contrárias ao explícito preceito legal da presunção de
inocência), algumas com indícios fortes de atos ilegais praticados e outras têm
contra si apenas a palavra de outros também acusados, sem evidência material alguma
da acusação contra si levantada. Nenhuma dessas pessoas teve direito a usufruir
do princípio civilizatório e legal da presunção de inocência – antes foram
designados como culpados a priori
pela mídia empresarial e pelas autoridades judiciais e policiais. Não serve de
consolo, nem de desculpas intelectuais, o argumento de que esse procedimento
tem sido aplicado secularmente aos negros, pobres e miseráveis do país que
jazem há anos nas cadeias, a título “preventivo” ou “provisório”, sem culpa comprovada
por julgamento legítimo. A própria utilização desse argumento desnuda a negação
do princípio da presunção de inocência e aponta como horizonte ideal de quem o
formula aquele em que a realidade tenha sido completamente transformada em uma
ordem totalitária capaz de encarcerar todos os que sejam considerados
indesejáveis. Aqueles, portanto, que querem que Lula, Dilma ou outras
lideranças do PT sejam presos e condenados (não lhes importa muito a ordem de
tais procedimentos), independentemente de prova material objetiva de
ilegalidade cometida, negando-lhes o benefício da presunção de inocência apenas
porque representam um projeto político distinto do seu, assumem uma atitude que
de nenhum modo pode ser espiritualmente legitimada e, ouso dizer, que sequer
politicamente poderia sê-lo, posto que é motivada por uma tendência
antipolítica, de destruição do mundo político, na medida em que almeja
simplesmente a aniquilação física ou participativa dos sujeitos que, por
expressarem uma dimensão que não cabe em seu modelo, não devam ter o direito de
aparecer no mundo da pluralidade humana – o critério de legitimidade, nesse
caso, residiria apenas em sua visão particular e exclusiva do mundo político;
trata-se, em uma palavra, de egoísmo, oligocentrismo, etnocentrismo, ou de
simples privilégio. Claro que o mesmo se aplica àqueles que, pertencendo ao
agrupamento político que foi ilegitimamente derrubado do governo em 2016,
desejam e apoiam medidas ou tentativas de medidas que visem a prisão ou
perseguição, sem prova e sem obediência aos parâmetros legais vigentes,
daqueles que dirigiram ou perpetraram o golpe. Nesse sentido, por exemplo, é
preciso dizer com todas as letras que a prisão do ex-deputado Eduardo Cunha,
entre outros, é ilegal e ilegítima, mesmo que contra si existam fartos indícios
materiais (e não apenas falas e delações) de ilegalidades cometidas, porque o
mesmo não possui mais poder para obstar as investigações e ainda não houve o
trânsito em julgado de sua sentença. O princípio deve ser aplicado
independentemente da identidade da pessoa a ser por ele beneficiada, embora, no
quadro atual, a tendência majoritária de ser vítima de sua inobservância recaia
sobre políticos e empresários direta ou indiretamente ligados aos governos do
PT. Não há cobertura nem fundamento espirituais, por exemplo, para a fala da
ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal (STF), que afirmou
explicitamente, por ocasião do julgamento do ex-ministro José Dirceu naquela
corte, que não havia provas contra este réu, mas ela assim mesmo o condenava
porque a literatura jurídica lhe permitia fazê-lo. Também fortemente ligado ao
raciocínio antecedente encontra-se o princípio da acusação específica. A
humanidade também elevou a princípio legal ou constitucional o entendimento de
que ninguém deve ser julgado pelo que é ou pensa, mas exclusivamente por um ato
ou conjunto de atos específicos e identificados que contrariem a Lei e tenham
sido intencionalmente praticados. Este princípio deriva de elevado discernimento
espiritual, na medida em que, rigorosamente falando, não existem pessoas
criminosas, mas tão somente atos criminosos cometidos isolada ou
sistematicamente por algumas pessoas. São, portanto, os atos que são julgados e
a intenção ou dolo da pessoa que os praticou. Logo, uma pessoa, em um processo
formalizado, deve se defender tão só e simplesmente dos atos elencados em uma
denúncia apresentada. Não se pode aceitar em termos de princípio, que uma
acusação seja feita e a pessoa acusada seja condenada por elementos genéricos
ou estranhos à denúncia. Quem concorda com tal procedimento deve estar disposto
a assumir o ônus de defender um estado policial, de exceção, ou totalitário.
Qualquer pessoa é livre para o fazer, mas não pode buscar acobertar tal atitude
sob o manto da justiça, da democracia, do estado de direito ou do discernimento
espiritual. De forma semelhante, se a pessoa preza minimamente pela
congruência, deve estar apta a aceitar o mesmo procedimento quando a si for
aplicado. Acontece, por exemplo, que tal procedimento é justamente o que
caracterizou a sentença do juiz Sérgio Moro contra o ex-presidente Lula no caso
do famigerado Triplex do Guarujá. A acusação contra o ex-presidente afirmava
que o Triplex era de sua propriedade e fora adquirido com recursos desviados de
“propinas” pagas em três contratos de construtoras com a Petrobrás. Além de em
nenhum momento a acusação ter sido provada (todas as testemunhas de defesa e de
acusação negaram os termos da denúncia e não houve evidência material alguma
que a fundamentasse), o próprio juiz do caso afirmou, em sua sentença, que em
nenhum momento se afirmara que os recursos para a aquisição do referido
apartamento tiveram origem em desvios da Petrobrás. A despeito disso, o juiz
condenou o ex-presidente. Ora, o próprio processo só foi julgado naquela Vara
federal pela presumível e eventual conexão com a Petrobrás, conforme decisão
anterior emitida pelo STF. Se a acusação inicial e a decisão do STF foram
ignoradas ou modificadas pelo juiz do caso, este mesmo decretou sua
incompetência jurisdicional para julgar o fato ao afastar a conexão com
recursos da Petrobrás, além de que o referido réu foi condenado por algo
estranho à denúncia, ou seja, defendeu-se ao longo de todo o processo de uma
acusação que não seria aquela considerada por ocasião de sua condenação. Não há
outra expressão para aplicar aqui, senão o de “juízo de exceção”. Se alguém
defende este procedimento, mais uma vez é preciso que se afirme de forma bem clara
que a liberdade de o fazer é incompatível com qualquer princípio oriundo da
espiritualidade com que a pessoa eventualmente afirme estar comprometida. Não é
possível defender esse procedimento e ao mesmo tempo afirmar aqueles princípios
que caracterizam a justiça. Tratar-se-ia de hipocrisia desmascarável, que
nenhum discurso de retórica espiritual, por mais sublime ou altissonante que
pudesse ser, seria capaz de esconder.
3. Por
fim, faço a menção ao maior dos slogans
que desencadeou as manifestações de massa em apoio ao golpe que derrubou o
governo Dilma Rousseff, o famigerado “combate à corrupção”. Dos três casos aqui
analisados, este é, claramente o de maior inconsistência e fragilidade. Com
fatos abundantes comprovados – conversas gravadas e reveladas, filmagens,
transações financeiras identificadas e rastreadas em dinheiro vivo ou em contas
no exterior, além de inúmeras “delações”, que não são evidências materiais, mas
que algumas indicaram a materialidade de ilegalidades praticadas por diversos
agentes que perpetraram o Golpe de Estado – não é mais possível ser levado minimamente
a sério o argumento de que o governo anterior caiu por causa do combate realizado
à sua corrupção. Até o presente momento, evidência material alguma de corrupção
praticada, autorizada ou acobertada pela presidente Dilma Rousseff foi
encontrada. Não há materialidade alguma que fundamente o argumento da corrupção
organizada e perpetrada pela cúpula do governo Dilma Rousseff, a despeito, é
óbvio, da corrupção praticada por diretores de empresas como a Petrobrás, sem que
jamais tenha sido encontrada e muito menos provada a ligação direta ou indireta
com a presidente do governo ilegitimamente derrubado. Por outro lado – embora
sempre se garantindo o princípio da presunção de inocência, da acusação
específica e materialmente provada, do direito à ampla defesa e das demais
garantias civilizatórias e constitucionais estabelecidas (a despeito de
sistematicamente descumpridas pela Operação Lava Jato e por outras instâncias
judiciais e policiais) – são abundantes os indícios de corrupção de altos membros
do governo originário do Golpe de Estado e também de agentes do campo jurídico
atuante no mercado milionário criado pelas “delações premiadas”. A despeito da
abundância e objetividade de tais indícios, não se ouvem mais “panelas batendo”
e não se veem mais passeatas de milhares “contra a corrupção” vigente. A
espiritualidade não dá guarida à hipocrisia. Não é sequer intelectualmente
honesto, muito menos espiritualmente legítimo, advogar a punição da “corrupção
do PT”, fechando-se os olhos para a corrupção existente em todos os segmentos e
partidos daqueles que perpetraram o referido Golpe de Estado. Algumas pessoas,
quando confrontadas com tal incoerência, costumam responder que toda a
corrupção deve ser punida, seja de que partido for, mas não estão dispostas a
ir às ruas, nem a bater panelas, nem a lutar publicamente pela derrubada de
governos (o que não se defende aqui; apenas mencionamos a atitude
contraditória) nos quais tais atos tenham sido cometidos, como o fizeram em
relação ao governo derrubado – a fidedignidade do seu discurso é
contundentemente negada pela atrofia de suas ações. Nenhum mundo comum, que é o
mundo político em seu sentido clássico e estrito, pode se sustentar com base em
tal nível de hipocrisia. O apelo a razões de ordem espiritual para falar
exclusivamente na “corrupção do governo anterior” ou “corrupção do PT” como motivos
suficientes para legitimar o Golpe de Estado dissolve-se a si mesmo ao emudecer
diante dos abundantes indícios de corrupção que, por serem originários de
outros arraiais, não cabem na indignação seletiva desses slogans. Em suma, sua inconsistência interna é tão gritante que
discurso espiritual algum pode salvá-la, muito menos o compromisso vivencial
genuíno com a espiritualidade que não pode acolher em si tal atitude.
Volto a salientar que analisei três situações específicas
à luz de sua incompatibilidade intrínseca com princípios espirituais. Alguém
que se julgue com estes comprometidos, e concorde com um dos três casos acima
analisados, vivencia uma espiritualidade abertamente contraditória ou
inconsciente; todavia, fazer asserções a respeito do que não se possui
consciência não é tampouco atitude que possa ser acolhida sob inspiração da
espiritualidade e, portanto, recai também na contradição. Via de regra, tal
contradição se origina da ausência de adequada introspecção a respeito da
legitimidade espiritual de alguma de nossas inclinações. Nem sempre o que
quero, desejo e prefiro se origina do discernimento espiritual; muitas vezes o
contrário acontece. Acolher um princípio espiritual é algo que não ocorre a
menos que eu esteja disposto a com ele comprometer-me em corpo, fala e mente,
ou em pensar, sentir e agir, nos âmbitos da invisibilidade e da visibilidade.
Analisei, repito, três casos específicos; estes não podem ser confundidos nem
alargados para absolver ou condenar a princípio nenhum credo ou agrupamento político
(a não ser o abertamente fascista ou totalitário). Não se pode, a priori, definir como de natureza
espiritual esta ou aquela preferência ideológica. São, ao contrário, imperativos
espirituais o respeito e tolerância para com visões políticas e de mundo que
divergem daquela que adotamos, bem como a defesa intransigente da liberdade de
qualquer um em expressá-las. O juízo visível e político sobre a justiça ou
injustiça, verdade ou falsidade de algo deve recair apenas sobre atos
concretos, objetiva e materialmente identificados, não sobre o credo ou
agremiação política, nem sobre a integridade das pessoas que eventualmente os
tenha praticado. Agir de outro modo, ainda que sob aplausos da mídia ou de maiorias
eventuais, não é algo que possa ter fundamento na espiritualidade, qualquer que
seja sua origem ou tradição, e nem mesmo no âmbito político do qual emerge o
mundo comum partilhado entre os seres humanos.