por José Policarpo Junior
Espírito.
Do latim, spiritus, significando
“respiração, sopro”, ou também “coragem e vigor”; equivalente do hebraico ruach (ar, respiração, fôlego) e do
grego pneuma (respiração). A
etimologia da palavra nos lembra que seu sentido aponta para o que é invisível,
imaterial, intangível, mas, ao mesmo tempo, infunde vida, movimento, direção ao
que é visível e material. Movimento e direção não significam, no entanto, subjugação ou dominação.
O
ser humano é, entre outros aspectos, um ente
material dotado de um princípio de imaterialidade, ou um espírito encarnado ou uma mente incorporada, conforme a
nomenclatura preferida. Do ponto de vista formativo, isto é, daquele dever ser
a que o ser humano é chamado no sentido de desenvolver mais profundamente a sua
própria condição humana, um dos aspectos mais importantes é considerar que o
invisível é chamado a infundir seu discernimento sobre o visível, ou que, em
outras palavras, aquilo que se manifesta entre os seres humanos seja dotado do
princípio da sabedoria, da razoabilidade, do discernimento. Poderíamos ilustrar
esse entendimento com vários exemplos, mas vou citar apenas dois.
Uma
pessoa precisa fazer uma dieta específica por motivos de saúde, por conseguinte
precisa evitar determinados alimentos prejudiciais em relação aos quais,
entretanto, sente uma atração compulsiva. Há, nesse caso, um conflito entre um
discernimento e um desejo. Uma parte de si - aquela responsável pelo sentido do
paladar e pelo estado emocional da ansiedade - deseja algo (visível, material)
que é incompatível com o que outra parte - o espírito, a intuição ou a razão -
compreende (princípio invisível, imaterial) ser inadequado para a própria
dimensão corpórea em que se exercem os sentidos físicos. Ninguém em pleno gozo
de seu entendimento discordará que, no caso mencionado, o mais adequado é que o
discernimento se sobreponha ao desejo - havendo diferentes modos de o fazer. Se
a pessoa consegue agir conforme seu discernimento, podemos dizer que tal ação
foi, nesse caso, uma ação espiritual. É imprescindível observar, no entanto,
que a preponderância de tal discernimento atua no sentido da promoção do
próprio bem-estar corporal, de um aspecto visível e material do ser humano; não
se trata, portanto, de repressão ou dominação do corpo, mas de uma ação que
visa a sua própria saúde.
Segundo
exemplo. Uma pessoa toma conhecimento de uma injustiça que está sendo
perpetrada contra outrem. Acontece que tal injustiça não é compreendida como
tal por um bom número das pessoas que a presenciam, mas é sim saudada por
muitos que estão tomados por algum tipo de emoção, ressentimento ou ódio para
com a pessoa injustiçada. Se a pessoa conscienciosa, que tem pleno entendimento
da injustiça que se comete contra outrem, não utiliza sua voz, seu poder, ou o
instrumento de que tenha a legitimidade para agir de algum modo em contrário à
referida injustiça, tal pessoa, por mais que proteste em contrário, estará
motivada apenas pelo seu egocentrismo ou por seu instinto de sobrevivência, por
mais sofisticado que venha a ser o discurso que utilize para justificar seu
comportamento ou inação.
Embora
de alcance e contexto completamente distintos, ambos os exemplos tentam apontar
para a compreensão de que a vida espiritual se caracteriza pela presença
orientada no mundo, de modo que possamos ser guiados, em meio a tudo que é
tangível e material, por aquilo que é intangível ou imaterial. O propósito,
porém de tal orientação, consiste em cuidar do mundo que é comum a todos os
seres humanos, e não para se tornar uma prática de exclusivo cuidado de si
mesmo. Conforme afirmou Hannah Arendt, o mundo não é o espaço, nem a natureza,
mas a tentativa sempre retomada de construção de um lar para que o homem possa
habitar em nosso planeta Terra. Por isso mesmo, o ato de cuidar do mundo
implica o respeito pelas tradições, o convívio e tolerância entre diferentes, a
instituição de práticas e costumes que estabeleçam uma esfera acolhedora aos
seres humanos em sua pluralidade. Isso não implica sujeição e reprodução
infinita do que já existe, mas o cuidado em reformar preservando tudo o que
promove aquilo que pode ser partilhado entre os homens.
O
ato de cuidar de algo ou de alguém implica sempre trazer de algum lugar para um
contexto específico a intenção desinteressada, o discernimento razoável, a
ternura e a perseverança, de modo a conduzir com firmeza e constância a ação
localizada em prol de algo, de alguém ou de muitos. Cuidar do mundo é,
portanto, por definição, algo que se faz contrariamente ao autocentramento, à
importância de si mesmo; algo que implica necessariamente superar o narcisimo.
Aristóteles
expressou, nA Política, o entendimento grego de que o ser humano é um “animal
político”, isto é, um ser da polis,
ou, em outras palavras, um ser para a convivência. Somente em convivência com
outros o ser humano se torna humano
no sentido próprio e apropriado do termo. A política, no sentido etimológico,
próprio e profundo do termo, é, portanto, cuidado com o mundo; mundo sem o qual
não podemos existir como humanos. Sem esse entendimento, dificilmente haverá
presença espiritual no espaço-tempo que habitamos.
Cuidar
do mundo é, portanto, cuidar do ser humano, importar-se com sua formação e
devir. Por outro lado, não se pode cuidar do mundo sem ação e presença
políticas, ainda que estas possam variar imensamente em seu escopo, abrangência
e estratégia. Por essa razão, o indivíduo que se julga uma pessoa
espiritualizada (com discernimento, orientado para o outro, movido pelo
altruísmo) e ignora as consequências políticas de suas atitudes, ou não
considera que este seja um tema atinente aos princípios de seu estar no mundo,
ou age na coletividade movido pelo ódio a alguma diferença específica, ou
demoniza as pessoas que dele divergem, pode ser tudo, menos alguém que esteja movido pelo espírito, isto é, pela dimensão intangível e esclarecida que
nos guia em meio ao mundo e entre os homens.
O
cuidado com o mundo comum implica, como já afirmado, o cuidado com os homens
que se entreveram por meio dele. Tal entendimento se faz ainda mais necessário
quando leva em consideração os mais frágeis e que se encontram na condição de
necessitarem de outros para se emanciparem.
Creio
que as implicações pessoais e políticas desse entendimento sejam claras, a
despeito de eventual dificuldade em segui-las. Pensando especificamente no
atual momento social e político brasileiro, vejo algumas das seguintes
implicações:
a) Independentemente
do princípio ideológico e partidário de cada pessoa, qualquer um que não
considere positivo o imenso processo de inclusão social (praticamente
eliminação da fome, diminuição significativa da pobreza extrema, aumento real
do salário mínimo, diminuição do desemprego e subemprego, diminuição dos
seculares obstáculos ao acesso dos negros aos benefícios da sociedade
institucionalizada) realizado durante os governos do PT desde 2003 dificilmente
poderia sustentar essa opinião como um princípio espiritual. Isto, obviamente,
não significa apoiar, deixar de criticar, concordar, nem mesmo deixar de fazer
oposição, como queiram alguns, a outros aspectos dos governos, mas estou me
referindo especificamente ao fato da diminuição geral da miséria, da pobreza e
da tímida diminuição da desigualdade socioeconômica, aspectos que deveriam em
tese ser defendidos e desejados por qualquer um que pretendesse se pautar por
uma existência espiritual;
b) Nenhum
princípio político e ideológico, quer de inspiração tradicional-conservadora,
liberal ou socialista, pode ser admitido como critério exclusivo e acima de
qualquer evidência diante de fatos, prioridades e, principalmente, de seres
humanos. Além disso, nenhuma dessas ideologias é historicamente imune de ter
contribuído com a criação de tragédias sobre a humanidade, embora igualmente
nenhuma delas tenha deixado de dar contribuições positivas ao desenvolvimento
humano; por essa razão, nenhuma delas deve ser estigmatizada, demonizada, nem
idolatrada. A humanidade deve seu progresso a diversas tradições, a variadas
contribuições liberais e socialistas, bem como, em nome de cada uma delas,
tragédias foram perpetradas;
c) Se o disposto na alínea anterior se aplica a
ideologias, há que se ter em muito mais alta relevância as pessoas. Ninguém
pode ser acusado, estigmatizado, demonizado, agredido apenas por expressar sua
convicção ou adesão a uma ou outra posição ideológica, a um ou outro partido -
o ato que assim procede se deixa dominar pela barbárie. Ninguém se torna
corrupto ou criminoso porque é socialista, liberal ou conservador, ou porque é
filiado a ou simpatizante de qualquer partido político, por mais que haja
discursos mil que apregoem e propaguem tais clichês por puro oportunismo
político, econômico ou institucional. Os atos anti-humanos é que devem ser
objeto de crítica, censura e punição, não o pensamento, credo ou adesão a este
ou aquele princípio, nem muito menos as pessoas que os expressam. Alguém deve
ser condenado se, e somente se, ficar cristalinamente provado, por provas e
meios lícitos, seu dolo e culpabilidade. Não custa lembrar que os regimes
totalitários é que condenavam pessoas por sua associação ou adesão a tal ou
qual posicionamento político e social;
d)
Cada um pode e deve esforçar-se por contribuir para o mundo a partir das ideias
e princípios que professa - e o mundo precisa de tal pluralidade e mesmo da
divergência respeitosa - desde que entenda que sua visão e princípios, por mais
preciosos que sejam, são também limitados, e que não há verdade absoluta que se
imponha a todos os homens.
Haveria
alguns outros aspectos a ressaltar tendo em vista especialmente a difícil situação
política pela qual passa a nossa sociedade. Creio, entretanto, que os aspectos
mencionados indicam alguns pontos importantes para que nossa presença no mundo
possa acontecer por meio de uma vida humana preciosa, e que, portanto, supere o
narcisismo e egocentrismo tão característicos do materialismo espiritual que se
espalha em todas as tradições de sabedoria, ocultando muitas vezes os tesouros
que ali existem.