Por José Policarpo
Junior
Como pesquisador das temáticas da formação humana e da
espiritualidade, tenho, até por dever de ofício, conversado com pesquisadores, estudiosos
e simpatizantes da área, ocasiões nas quais falamos não apenas dos nossos
tópicos de estudo, mas também de assuntos gerais relativos à sociedade e à vida
pessoal. É neste último tipo de conversa em que se manifestam muitas vezes as
posturas, atitudes ou valores pessoais, ocasiões nas quais ficam patentes,
algumas vezes, as incoerências entre estes e os princípios teóricos que as
pessoas dizem esposar.
Meu propósito com este breve post não é fazer denúncia dessas
incoerências de um ponto de vista pessoal - mesmo porque não há ser humano que
não seja incoerente em algum aspecto, muito menos eu - nem sequer insinuar
condenação moral de quem quer que seja. Aliás, a trajetória formativa não se
pauta pelos julgamentos e condenações, mas pelo discernimento, persistência e
compaixão, dentre outros valores. Portanto, o intuito desse breve texto é o de
conduzir a uma reflexão a respeito do assunto, a qual será tão mais efetiva
quanto possa ser comensurada com os princípios e valores acolhidos e
descobertos por cada um, em relação a si, aos outros e ao mundo partilhado com
os demais seres humanos. Peço, entretanto, a consideração do leitor para o fato
de que este não é um texto acadêmico em sentido estrito, mas, sim, um pequeno
texto de um blog, com todas as limitações daí resultantes.
Percebo muitas manifestações de praticantes, buscadores e
estudiosos da espiritualidade quanto à ênfase na interioridade, ou nos aspectos
considerados exclusivamente existenciais, com pouca consideração ou às vezes
até mesmo desprezo por assuntos tidos por mundanos, comuns, não espirituais, tais como aspectos
referentes à vida em grupo, à sociedade, à vida política. Em geral, todas essas
pessoas têm perfeita noção teórica de que a verdadeira espiritualidade não é a
que deixa de ser atuante no mundo, mas, sim, a que tem discernimento e
habilidade para nele agir. Mas esse entendimento demonstra se resumir, em tais
casos, à dimensão teórica, não sendo capaz de repercutir em atitudes e
posicionamentos cotidianos referentes ao estar no mundo entre outros seres
humanos.
Por que essas incoerências pessoais acontecem, se tais pessoas
têm clareza teórica e conceitual sobre isso? A primeira resposta, de cunho mais
geral, que dou a tal questão é que somos todos seres humanos; realidade que por
si mesma implica conviver não só com nosso lado luminoso (no caso, nosso
entendimento intelectual sobre esses assuntos), mas igualmente com nosso lado
sombrio (nossas atitudes pouco iluminadas por aquilo que supomos conhecer
intelectualmente). A segunda resposta, que pretendo enfatizar mais aqui, embora
relacionada com a anterior, consiste em que a capacidade ou incapacidade de ver
ou de não ver determinadas coisas depende mais do nosso caráter do que de nossa
eventual inteligência; esse entendimento
não é meu, mas de Erich Fromm, que afirmou que “reconhecer a verdade não é
principalmente uma questão de inteligência, mas de caráter”.
Acontece que o caráter, segundo a compreensão psicanalítica
utilizada por Erich Fromm, é uma espécie de segunda natureza do homem,
constituída por aspectos que foram estruturados conscientemente e por outros
que foram acumulados, escondidos ou recalcados inconscientemente. Essa seria,
portanto, uma das principais razões pela qual a pessoa (qualquer uma, em tese)
pode afirmar um princípio teoricamente e negá-lo atitudinalmente no cotidiano.
Diante disso, o mais importante aqui não consiste em apontar erros a quem quer
que seja, mas ressaltar o aspecto fundamental da necessidade de olhar para os
pontos sombrios de si mesmo.
Segundo os antecedentes, que não podem aqui ser aprofundados, um
dos aspectos do ser espiritual - que no entendimento de Teilhard de Chardin
indica a dimensão interior de qualquer fenômeno, especialmente do interior
humano - é desenvolver a capacidade de olhar para si mesmo e reconhecer tudo o que
lá se manifesta. O olhar para a interioridade não é, entretanto, um fim em si
mesmo, como muitos praticantes e buscadores espirituais terminam por pensar.
Olhar para dentro de si implica, em primeiro lugar, deixar que se manifestem à
nossa consciência todos os aspectos de nosso interior, luminosos ou sombrios,
sem julgamento, nem condenação. Em segundo lugar, implica reconhecer
progressivamente não haver diferença significativa entre o que está fora e o
que está dentro de nós. Em terceiro lugar, implica finalmente reconhecer não
haver um “fora” e um “dentro”, mas ver todos os fenômenos e todos os seres como
expressão de uma só realidade.
Cultivar a espiritualidade implica, portanto, sair da
autorreferência e do primado de si. A essência de si mesmo não é distinta da
alteridade, embora sejam ambos diferentes como fenômenos. A consequência disso
é que há um mundo e há seres diferentes de mim e ao mesmo tempo iguais a mim
como manifestação de uma realidade da que todos nós fazemos parte. Mas isso não
é um entendimento teórico apenas, mas um discernimento pessoal, vivencial,
prático.
Por essa razão, o praticante ou estudioso da espiritualidade
que se julga acima dos demais, que pensa estar mais desenvolvido do que outros,
que supõe estar incólume a determinados erros, por mais entendimento de que se
julgue portador, termina por conceber a si mesmo como substancialmente distinto
dos demais, esquecendo que as eventuais distinções existentes não o são de
natureza, mas secundárias, acidentais. Por essa razão, tal atitude, mesmo
apregoada com adjetivos espirituais, termina por se revelar mais uma faceta do
autocentramento ou do velho “Eu”, um narcisismo espiritual, do que uma
realização verdadeira. Tal atitude também termina por se reverberar no âmbito
da vida comum, na polis.
Devido à extensão deste post, darei continuidade ao assunto em
um próximo.